sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Homenagem ao pai e professor Nelson Kafruni

Outros verões


SIMONE KAFRUNI

Ela não entrava no mar porque, naquela época, na parte banhada pela água, a areia era cheia de caramujos e tatuíras que machucavam os pezinhos pequenos. Cada vez que queria tomar um banho, pedia para o pai levá-la no colo até “o fundinho”, onde o chão já não era cravejado de “pedrinhas”. E ele levava. Sempre.

Ela aproveitava a mão forte do pai e a segurança daquela presença para se jogar contras as ondas. E pedia, com as duas mãos agarradas na dele:

_ Puxa pai, puxa forte, sou um barquinho...olha...puxa, eba.

E ele puxava, rodopiava o corpinho pequeno na água. E ria.

Noutro verão, férias programadas, foram para Gravatal. Em pleno janeiro, numa estação de águas termais. No primeiro dia, banho de lama medicinal. A ideia era se lambuzar, esperar secar e aguardar pelos efeitos milagrosos. Só que fazia 40 graus. Na sombra. E quem disse que a lama no corpo do pai secava. Era tanto suor que a lama só fazia pingar. Do peito peludo, escorria aquela gosma marrom. E agora ela é que ria.

_ Não aguento essa lama _ disse ele, passando num chuveiro antes de pular na piscina.

Ela ainda olhava os círculos de água que se formavam na superfície onde o pai mergulhara, quando ouviu o berro.

_ Ahhhhh. O que é isso! Água quente (36 graus). Tá louco. Corre, diz pra tua mãe nem desfazer as malas. Estamos indo para Florianópolis.

E lá foram eles. De carro. O casal na frente. Os dois irmãos guerreando atrás. E ela metida entre os bancos dos pais, matando a curiosidade.

_ O que? Ah, aquilo lá é uma fábrica. Não, filha, o acelerador é o pedal da direita. O mundo é redondo sim. Ãã, não filha, a gente não vai cair dele por causa disso. Fica tranquila. Essa máquina aí é uma colheitadeira _ respondia, com toda a paciência de um professor.

E cochichava para a mãe:

_ Mas essa guria quer saber tudo. Nasceu repórter. Faz pergunta demais...

Aquela foi uma viagem especial. Conheceram 17 praias num só verão. Os cinco, na praia, com direito a banho de mar sob a luz da lua. Inédito e inesquecível! E ela ainda pensou: “quero morar aqui. Tem tanta praia”.

Num outro verão, estavam os três dentro d’água. Ela, o pai e o irmão caçula. Todos de mãos dadas.

_ Vamos mais no fundo, pai?

_ Aqui tá bom filha, é perigoso. Ihhh, olha lá, não disse, é perigoso.

Mais à frente, um casal de argentinos se afogava. O pai mandou ela nadar em direção à praia. E de lá onde estava lançou o irmão, pequeno, para os braços dela, que já estava com a água numa altura segura.

_ Leva ele pra areia. Vai. Agora.

E nadou na direção contrária. Foi buscar os argentinos. Conseguiu tirá-los do buraco. Salvou os dois do afogamento. E chegou na areia como o herói que, para ela, sempre fora.

Alguns verões depois, ela precisava de um up grade no Carnaval. Botou na cabeça que queria ir no baile dos adultos. Não curtia mais a festa das crianças embora ainda não tivesse 13 anos. E lá foi ele, com a mãe, no clube, à noite, levá-la na festa de “gente grande”. Com sono, sem saco para dar uma de babá, mas firme e forte. E ai de quem se assanhasse com a filhinha estreante.

Com a liberdade conquistada, pelo menos durante o verão, ela começou a curtir as saidinhas noturnas. Às vezes se empolgava e perdia a hora. Até ver a figura dele, no meio da multidão, no centrinho da praia, furioso. Ela voltava “pianinho” pra casa, ouvindo aquele sermão.

_ E amanhã tu tá de castigo, hein, baixinha! Não adianta chorar.

Tantos verões se passaram e de repente era ela quem o levava à praia. Na Ilha, o pai gostava de Canasvieiras, justamente a praia que ela detestava.

_ Muita gente, pai. Eu conheço uma prainha mais tranquila...

_ Quem quer tranquilidade, filha? Tua mãe e eu gostamos de ver gente. E gosto tanto daquele marzinho morno. Foi lá que a gente ficou até as 9h da noite tomando banho de mar em 1978. Lembra? Foi a primeira vez que te trouxe para Florianópolis.

E lá iam pegar praia em Canasvieiras. Tomar cerveja, olhar pro mar, comer camarão e conversar sobre tudo ou qualquer coisa. Dar braçadas nas águas calmas. Ele era exímio nadador. Fora campeão na juventude.

Aposentado, foi morar na praia. Ir à beira-mar era o seu passeio predileto. Sentar na cadeira de praia, beber cerveja, comer milho, tomar banho de mar, conversar nas barracas com os amigos de tantos anos. Esperava o verão com ansiedade. Amava o mar. Como amava. Queria ver a praia cheia, gostava do calor para poder entrar no mar.

Até que, nesse verão, entrou para nunca mais sair.

E para ela é como se fosse o último verão.