Por Mário Bentes em 20/06/2011
“Regras de uso de Twitter a afins, criados por grandes conglomerados de comunicação, são a prova de que jornalista, se livre, é perigoso.”
A citação acima é de minha autoria e foi publicada no dia 17 de maio deste ano em meu perfil da rede de microblog Twitter. Tenho, no momento em que escrevo este artigo, 1.777 seguidores que acompanham tudo o que escrevo e repercuto a partir de terceiros, na mesma rede. Deste montante – muitos são jornalistas –, apenas quatro pessoas deram o chamado retweet, quando repercutem para seus próprios seguidores, na íntegra, uma dada micro-postagem. Das quatro pessoas que gostaram do que escrevi (os outros podem simplesmente não ter concordado, evidentemente), duas são jornalistas. Coincidentemente, ambos estão fora das redações dos “grandes conglomerados”.“Regras de uso de Twitter a afins, criados por grandes conglomerados de comunicação, são a prova de que jornalista, se livre, é perigoso.”
A citação acima é de minha autoria e foi publicada no dia 17 de maio deste ano em meu perfil da rede de microblog Twitter. Tenho, no momento em que escrevo este artigo, 1.777 seguidores que acompanham tudo o que escrevo e repercuto a partir de terceiros, na mesma rede. Deste montante – muitos são jornalistas –, apenas quatro pessoas deram o chamado retweet, quando repercutem para seus próprios seguidores, na íntegra, uma dada micro-postagem. Das quatro pessoas que gostaram do que escrevi (os outros podem simplesmente não ter concordado, evidentemente), duas são jornalistas. Coincidentemente, ambos estão fora das redações dos “grandes conglomerados”.“Regras de uso de Twitter a afins, criados por grandes conglomerados de comunicação, são a prova de que jornalista, se livre, é perigoso.”
Mas será mesmo coincidência? Ou será que alguns jornalistas deixaram de concordar publicamente – aplicando o retweet – para evitar algum tipo de atrito com seus editores e demais chefes nos jornais onde trabalham? Levanto tal questão a partir do que creio ser uma modinha (alguns chamam de tendência) entre os representantes da “grande mídia”. Recentemente, alastrou-se pelos jornalões a prática de criar o que chamam de “regras de uso de redes sociais” para jornalistas. Resumindo, são coisas que os jornalistas “devem evitar” nas redes sociais, a exemplo do Twitter, Facebooke similares. Nos EUA, redações do Washington Post, Bloomberg e a agência de notícias Reutersestão entre os exemplos. No Brasil, Folha, Globo e TV Recordseguiram o modelo.
A justificativa dos diretores e sócios destes veículos de imprensa é que, na ocasião de algum jornalista assumir alguma posição a respeito de algum tema, seja ele um partido, um candidato ou uma campanha, a credibilidade do jornal ou emissora ficaria ameaçada; ou que opiniões pessoais dos jornalistas sejam confundidas pelos leitores com a posição oficial do jornal. Isso para ficar nos argumentos mais usados. Mas será isso mesmo? Creio que o buraco é mais embaixo e esconde muito mais ou mesmo nada que esteja relacionado com mera preocupação com “credibilidade” do jornal ou do jornalista.
Concentração de mídia
Antes de falar especificamente sobre a mais nova modinha dos jornais, vamos deixar algumas coisas claras, para começar. Tal como a renda econômica, a concentração de mídia no Brasil é enorme. A esmagadora maioria dos jornalões de todo o território são ligadas a famílias “tradicionais” que, não raramente, estão ligadas a partidos políticos ou seus donos, geralmente “ricos” e ocupam cargos eletivos – o que contraria a Constituição Federal, que proíbe outorgas de rádio e TV para políticos.
Dados do portal Donos da Mídia mostram que existem, pelo menos até a ocasião da minha consulta, 41 grupos de abrangência nacional que, juntos, controlam 551 veículos de comunicação – jornais impressos, emissoras de rádio e TV, revistas, portais e agências de notícias. De acordo com a mesma fonte, os grupos de comunicação possuem 19.466 sócios, sendo destes 271 políticos. Este último número são os “caras-de-pau”, que colocam seus nomes nos contratos sociais das empresas sem se importar com a legislação – já que é o próprio Congresso, cheio destes políticos-comunicadores, que deveria atentar a isso. Mas o número é bem maior, se considerarmos a infinidade de sócios que são parentes ou têm ligações diretas ou indiretas com políticos – os carinhosamente chamados “laranjas”. Estes, com o perdão da piada infame, estão frutificando a cada dia.
O mesmo não vale para as rádios comunitárias, por exemplo. As outorgas dessa categoria levam anos para sair por conta de imensa burocracia e, enquanto as rádios não são legalizadas – apesar de prestarem importantes serviços às suas comunidades –, são taxadas de “rádios piratas”, capazes de derrubar aviões, ou estão a serviço do crime organizado, tráfico de drogas e outras sandices do discurso dominante. Para piorar, muitas das rádios que deveriam ser comunitárias, são “empossadas” por grupos de interesse privado ou mesmo por políticos de menor escalão (porém não com menor gana por poder e dinheiro), como vereadores de botequim e outros aspirantes a novos ricos do dinheiro fácil.
Resumindo: só quem se comunica massivamente neste país são os ricos e poderosos. Não se trata de discurso démodé ou de esquerdista – geralmente é taxado deste modo quem assim pensa. São os números e o contexto político do país que mostram, contra a vontade dos poderosos, que a grande maioria da população é ainda desprovida do poder de informar sua realidade sob a ótica de sua própria realidade, mas apenas pela visão quase unilateral da chamada “grande imprensa”. Entre parte da população não emancipada comunicativamente estão – vejam que engraçado – os próprios jornalistas. Sim, porque quem acha que um jornalista, por atuar em um jornal ou emissora, tem liberdade de expor tudo o que apura sob o viés que crê mais próximo do real, se engana.
Pluralidade de conteúdo
O material captado pelos jornalistas passa por um editor, por um editor-executivo, por um chefe de redação e, em alguns casos, pelo dono do veículo. E é bem comum que parte do material seja descartado por “questões editoriais”. Só quem é jornalista, e sabe de fato o que vê durante sua apuração, sabe que por aí caminha a mais pura e sem-vergonha farsa dos jornais: o filtro das notícias, ou de parte delas, também chamado de gatekeeping, é muitas vezes a desculpa cínica sincera para censurar o que os donos dos jornais acreditam que seus leitores não devam ver. Eles decidem, por tais “questões editoriais”, o que o público precisa ou não ter conhecimento. Para uma analogia perfeita, vejam (ou leiam) Cidadão Kane, de Orson Welles. (Muito além do Cidadão Kane é outra pedida, para o caso brasileiro.)
E assim, os jornalistas, desprovidos de meios próprios onde pudessem dar suas opiniões pessoais, foram reféns deste sistema durante muito tempo. Mas aí veio uma tal de internet que, ao contrário da lógica comercial natural da tecnologia dos grandes interesses industriais, acaba sendo mais democrática. E com ela, mais tarde, surgiram os blogs, as redes sociais etc. E como foi interessante a internet para os jornalistas! Aos poucos, criaram seus blogs, seus perfis no Twitter, Buzze Facebook, entre outros, e começaram a escrever. A novidade: sem os filtros dos editores, dos editores-executivos e, claro, dos donos dos jornais. E não é que isso incomoda?
Incomoda e muito. Os jornalões viram que os jornalistas, em seus espaços independentes, têm poder – ainda bem limitado e inferior, que fique claro – de, indiretamente, influenciar o público; de dar suas opiniões na grande rede e de dar outras visões, além da massificada pelo Jornal Nacional e similares. No Twitter, o público leitor acompanha os perfis da “grande imprensa”, mas faz questão de acompanhar os perfis particulares dos jornalistas. Até porque “informação”, como dizem, “nunca é demais”. Os jornalistas precisam dos empregos para sobreviver, não para agir como jornalistas. Mas os jornais precisam dos jornalistas para funcionar, independente de qualquer coisa. De qualquer modo, isso deveria ser bom, pois a multiplicação das fontes de informação, sejam elas empresas de comunicação ou pessoas capazes de bem informar (independente da formação em jornalismo), poderia garantir pluralidade de conteúdo. E o problema é justamente este: pluralidade.
A velha prática
Quando os jornalistas passaram a dar suas próprias opiniões sobre temas gerais, passaram – na cabeça comercial doentia dos patrões – a competir com os jornais, na medida em que forneciam conteúdo não necessariamente igual ao dos veículos onde atuam. Como já vimos, a maioria dos veículos de comunicação no Brasil (a situação fora daqui não é muito diferente) é ligada a políticos, portanto cheios de interesses comerciais e, claro, eleitorais. E os patrões passaram a ver como ameaça essa tal liberdade dos jornalistas. Livres, sem amarras, se tornaram perigosos para os negócios.
Quando os jornais, ao implantar regras de uso em redes sociais para os jornalistas que com eles trabalham, usaram o argumento que opiniões de jornalistas podem ser confundias pelo “público” como sendo as do próprio veículo, não tenham a menor dúvida: o público a que eles se referem são os seus clientes, aqueles que negociam “notícias imparciais” em troca de publicidade extra. O público que eles tanto fazem de conta defender não está na população, de fato. Aliás, o tal público leitor não é idiota, como os jornais fazem questão de acreditar ou de fingir que acreditam. O público sabe que jornalistas podem ter opinião própria, assim como sabe que jornalistas podem ser vendidos e opinar de acordo com que o chefe quer – inclusive de criticar os jornalistas verdadeiramente livres. O público só não é idiota.
Diante de cenário tão ameaçador – informações sobre muitos vieses, opinião própria, pluralidade de conteúdo e de análises –, os jornalões não tiveram dúvida em dar um basta nisso. Ora, esse samba do crioulo-doido, conhecido vulgarmente como democracia e liberdade de expressão, precisava parar! Essa anarquia de conteúdo, que comprometia e compromete o business e o establishment, devia ser detida. E os jornalões, que adoram falar de liberdade de expressão quando se sentem ameaçados por qualquer um que ouse processá-los por, por exemplo, quebrar seu sigilo fiscal – quando nem a Justiça o fez – ou condená-los por um crime sobre o qual nem sequer foram julgados, recorrem justamente à velha prática da censura.
A inconstitucionalidade das medidas
Não estamos falando de censura propriamente dita, às claras. Os manuais de uso de Twittere afins não dizem que jornalistas não podem usar as redes. Eles fazem pior. Os manuais “recomendam” a não manifestação de posições políticas e similares sob o argumento pífio, citado acima, de que tais podem prejudicar a “credibilidade” e “imagem” do veículo. Ora, não estando definido exatamente o que pode ou o que não pode, o que fazem os jornalistas? Calam-se de maneira abrangente sobre assuntos que tratariam normalmente e passam a falar de amenidades ou, em alguns casos mais extremos, optam por excluir-se das redes sociais. Afinal, diante de tanta subjetividade, quem garante que minha singela reclamação de um posicionamento político de um parlamentar da Indonésia não será entendida como subversão aqui no Brasil?
Aí entra o primeiro crime. Assédio moral dentro do ambiente de trabalho. Pode parecer interpretativo, mas eu, particularmente, entendo que a simples possibilidade de punição, ou mesmo a perda do emprego por algo não necessariamente definido claramente como desvio de conduta por parte do profissional, no caso o jornalista, pode e deve ser encarado como assédio moral. Trabalhar sob risco de demissão quando ajusta causa é, no mínimo, subjetiva, pode ser entendido assim. É uma espécie de chantagem com os trabalhadores.
O segundo crime é o da inconstitucionalidade das medidas. Está lá, na Carta Magnado país, que é direito de qualquer cidadão (jornalistas também se enquadram no perfil, queiram ou não os patrões) a livre manifestação do pensamento, independente de credo, religião, posicionamento político. Em outras palavras, é censura. O que os jornais fazem com os jornalistas hoje com as tais regras de uso não é nada diferente do que fazia o Departamento de Ordem Política e Social (Dops) no período da ditadura militar, só que sem tortura física. Usam do supracitado assédio moral e ameaça de demissão.
Direito para um, direito para todos
A Constituição, além de garantir liberdade de expressão, também fala em direito de ir e vir, acesso à educação, saúde e outros itens raros no mercado. Ela não diz que o cidadão da República Federativa do Brasil tenha que optar entre um e outro, mas diz que ele tem direito a todos eles. Portanto, o que peço aos colegas jornalistas é que, tal como preza a Constituição, não cedam à chantagem patronal e não optem pelo salário em troca de manter-se em silêncio e perder a liberdade. Não é fácil, posso garantir. Sei o que é ter a liberdade, sobretudo o emprego, sob ameaça dos interesses particulares.
Mas é importante deixar bem claro que, a partir do momento em que o cidadão livre, seja ele jornalista ou não, se deixar levar pela ameaça de perder um dos seus direitos garantidos há quase 30 anos depois de um período de sangue, suor e lágrimas, eles estará criando o caminho sem volta para que outros sejam retirados. E, de quebra, estará desonrando os que morreram em nome de tais direitos.
Com as “regras de uso” de redes sociais para jornalistas, os jornais, ainda que de maneira aparentemente não combinada entre si, acabam por criar, juntos, um momentaneamente heterogêneo Ato Institucional da Imprensa Nº 1(AII-1). Da forma em que as coisas andam, com os donos dos jornais cada vez mais inseridos no parlamento de Brasília e colocando seus interesses particulares e empresariais acima dos interesses públicos e coletivos, receio que não demoraremos a chegar no AII-5.
Afasta de mim, e de todos nós, este cale-se.
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Importante: a liberdade de opinião e expressão na internet, em contrapartida à tirania da “grande mídia”, vale também para não-jornalistas. Existem muitos cidadãos que exercem outras funções durante a vida que não o jornalismo, mas que exercem papel fundamental de dar visões diferentes das massificadas pela imprensa corporativa. O artigo se concentra nos jornalistas por conta, especificamente, do assunto tratado, que são as famigeradas “regras de uso” das redes sociais – que não exercem impacto direto na atuação dos não-jornalistas.
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[Mário Bentes é jornalista, redator, escritor e fotógrafo]